O ataque do grupo armado Hamas, sustentado pelo Irã, em Israel surpreendeu o mundo. Classificada como “sem precedentes”, a ofensiva provocou a morte de milhares de pessoas nas regiões que foram afetadas pela guerra, podendo ocasionar consequências ainda mais históricas para os países que estão diretamente envolvidos no contexto e seus apoiadores. Para melhor compreender o efeito da relevante escalada na Faixa de Gaza, o Portal A TARDE entrou em contato com especialistas no tema.
Para Milton Deiró, pesquisador do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), o ataque pode ocasionar diversas consequências no mundo, desde a reaproximação dentro do governo de extrema-direita de Netanyahu em busca de uma resposta armada, até o atraso na abertura de relações entre Arábia Saudita e Israel, que fortaleceria o Irã.
“Esse é o pior ataque a Israel em sua história. Ontem o embaixador israelense na ONU afirmou que esse ataque de sábado foi o equivalente, em Israel, ao 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos. Claro que houve momentos de guerra aberta e total, como na Guerra dos Seis Dias em 1967 e na Guerra do Yom Kippur em 1973, todas iniciadas pelos árabes mas vencidas por Israel. Mas esse ataque tem magnitudes únicas na história, até porque estava focada em um massacre de civis em paralelo a ataques militares. Não foi uma operação militar do Hamas, foi um ato vil de terrorismo”, classifica.
O professor e pesquisador não descartou uma nova escalada entre Estados Unidos e Irã, que apesar de serem inimigos declarados, preferem evitar um conflito armado. Segundo Milton, uma guerra direta entre os países é improvável, mas segue na esfera do possível. “Caso o Irã seja ligado ao ataque de forma indelével, é possível que os EUA e Europa busquem formas de retaliar. Mas uma escalada a ponto de gerar uma guerra mais ampla entre EUA e Irã é pouco provável”, argumenta.
“Pela qualidade tática do ataque, não tem como o Hamas ter planejado isso sozinho. O Hamas é um grupo terrorista quase “artesanal”, e atua como guerrilha terrorista. O ataque de sábado teve um grau de sofisticação tão grande que não me parece gestado num subterrâneo de grupo terrorista, mas sim numa sala de planejamento militar de força armada de estado”, explica.
Logo após o registro dos ataques, no sábado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) repudiou o que descreveu como ataques terroristas contra civis. Ele afirmou também que o Brasil não poupará esforços para evitar a escalada do conflito e utilizou a atual Presidência do Conselho de Segurança da ONU para conduzir futuras negociações pacíficas.
“Conclamo a comunidade internacional a trabalhar para que se retomem imediatamente negociações que conduzam a uma solução ao conflito que garanta a existência de um Estado Palestino economicamente viável, convivendo pacificamente com Israel dentro de fronteiras seguras para ambos os lados”, publicou o presidente.
Fiquei chocado com os ataques terroristas realizados hoje contra civis em Israel, que causaram numerosas vítimas. Ao expressar minhas condolências aos familiares das vítimas, reafirmo meu repúdio ao terrorismo em qualquer de suas formas.
Para Felippe Ramos, que é sociólogo, pesquisador da New School for Social Research de Nova York sobre crises políticas e especialista em Relações Internacionais pela UFBA, a posição do governo foi acertada. Ele enalteceu a coragem do presidente para condenar de forma imediata a ofensiva de autoria do Hamas e lembrou de outros governos de esquerda que tentaram justificar os atos pelo histórico de violências sofridas pelos palestinos.
“Foi uma posição corajosa dado que a base petista é claramente favorável à causa palestina. No Brasil, a esquerda é pró-Palestina enquanto a direita é pró-Israel, vide a posição do ex-presidente Jair Bolsonaro. Então a posição oficial do governo Lula de condenar sem pestanejar os ataques terroristas foi de certo modo até surpreendente. Outros governos de esquerda, como o de Petro na Colômbia, buscaram justificar as ações do Hamas através do recurso a história de violências sofridas pelos palestinos em territórios ocupados”, pontua.
Ramos acredita que apesar da busca por protagonismo do Brasil, a resolução deste conflito deve ter maior efetividade entre as potências globais que possuem maior interesse na região, com a ONU correndo por fora.
“O Brasil, na presidência rotativa do conselho de segurança da ONU, convocou imediatamente uma reunião. Apesar de não ter chegado em lugar algum, isso demonstra a vontade do país de exercer algum protagonismo. Mas será difícil obter algum avanço via ONU. A tendência é que potências globais e regionais com forte interesse na região tenham maior protagonismo e efetividade em diálogos por fora do sistema das nações unidas”, destaca.
Além de condenar os ataques, classificados como atos terroristas pelo presidente Lula, o governo brasileiro está sendo pressionado para reconhecer o Hamas como um grupo terrorista. Felippe Ramos argumenta que o país escolhe uma maneira segura de abordar o tema, já que países como Estados Unidos utilizam a classificação de forma politizada e sem um parâmetro claro. Esta seria uma forma do Brasil adotar a neutralidade diante de outras potências mundiais.
“Como a maior parte dos emergentes e do Sul global, há uma hesitação do Brasil em adotar a classificação. Potências como os Estados Unidos utilizam essa classificação de modo politizado e de acordo com suas conveniências. O mesmo país ou organização é incluído ou retirado da lista americana de terrorismo de acordo com o avanço de negociações bilaterais e não por preencher ou não preencher critérios objetivamente claros. Nesse sentido, o Brasil calcula que não haveria ganhos concretos ao alinhar-se a essa designação. No entanto, como mencionado, o governo brasileiro não hesitou em classificar os atos como terroristas. Me parece uma saída inteligente porque mantém o princípio do repúdio ao ataque a civis sem se comprometer demais com as potências que apoiam um lado do conflito”, aponta.
Milton lembrou da atuação de grupos que se dizem políticos, como Al Qaeda, Talibã e ISIS e afirmou que o Hamas deve ser classificado também pelo Brasil como terrorista. Ele citou que é necessário abrir mão da violência e buscar o caminho da pacificação antes de ser encarado como um movimento puramente político.
“Eu entendo que o Hamas tem sua parcela de organização política, mas enquanto recorrer aos métodos da violência e do terror, deve ser chamado pelo nome: grupo terrorista. Veja que Al Qaeda, Talibã, ISIS se denominam grupo político, mas são terroristas. O Hamas, idem. Aliás, em termos políticos, a autoridade reconhecida na Palestina é o Fatah, que já foi grupo terrorista mas abriu mão da violência e, assim, se legitimou como player político. Aqui na América do Sul as FARC passaram por esse processo. Era um grupo narcoterrorista que aderiu ao processo de paz e se tornou, assim, um partido político legítimo. Enquanto o Hamas não seguir o caminho da pacificação e politização natural, terá que ser chamado pelo que são: terroristas”, afirma.
A escalada histórica entre Israel e o grupo Hamas pode ocasionar mudanças na guerra entre Rússia e Ucrânia, que está acontecendo no território ucraniano desde o ano passado. Com as atenções do mundo na Faixa de Gaza, os recursos de ajuda enviados ao país de Volodymyr Zelensky devem diminuir, garantindo uma vantagem para o Kremlin, de Vladimir Putin.
“Isso significa menos disponibilidade de armas para a Ucrânia. Além disso, o foco da mídia mundial agora está em Gaze e em Israel. A Ucrânia se tornou cenário secundário, infelizmente. E a Rússia pode se aproveitar disso para uma nova ofensiva ou um conjunto de ataques indiscriminados para forçar Kiev a negociar uma paz nos termos territoriais atuais”, analisa Deiró.
Interessado em manter o apoio na Ucrânia e decidido ao lado de Israel, os Estados Unidos devem trabalhar para diminuir o conflito na Faixa de Gaza. Felippe Ramos avaliou a importância do cenário atual para o presidente Joe Biden.
“Acrescentar mais um conflito dessa magnitude é um pesadelo para Biden em meio a aproximação das eleições na qual concorre a reeleição. O objetivo de Biden deve ser baixar o calor do conflito ao tempo em que apoia decisivamente Israel. Mas se Israel cometer excessos demais, deve também bilateralmente tentar frear a ala mais radical de Israel. É um equilíbrio dificílimo para Biden, um presidente fraco”, critica.
Logo no início do conflito, a Rússia se manifestou condenando a guerra em Israel e pedindo uma solução para o embate. O país também criticou a atuação dos Estados Unidos no local. Pelo lado de Kiev, Zelensky acusou os russos de ajudar o Hamas e pontuou que a guerra na Faixa de Gaza era de interesse do Kremlin.