O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretende permitir que os ministérios fixem limites para aceitar precatórios (dívidas judiciais após sentença definitiva) como moeda de pagamento em transações com a União, uma medida que gera controvérsia na equipe econômica e pode suscitar questionamentos na Justiça.
Minuta de uma portaria obtida pela Folha de S.Paulo prevê que os ministérios deverão definir um teto para o uso de precatórios para abater pagamentos devidos à União nas situações em que há autorização constitucional -como negociações de dívidas, concessões de infraestrutura ou até venda de imóveis públicos.
“Seguindo as diretrizes do ministério supervisor, o edital deverá dispor sobre condições e limites para a aceitação de precatórios, com a finalidade de assegurar a implementação de objetivos regulatórios em seu âmbito de competência, observando que na ausência de indicação sobre limites e condições o outorgante deverá aceitar precatórios na sua integralidade”, diz o texto.
A regulamentação do chamado encontro de contas foi discutida em reunião na manhã desta quinta-feira (17) entre os ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Jorge Messias, da AGU (Advocacia-Geral da União). Os dois serão os responsáveis por assinar a portaria interministerial sobre o tema.
O ato busca disciplinar a possibilidade de usar dívidas judiciais para quitar obrigações com a União nas diferentes modalidades previstas na emenda constitucional que trata do tema.
As modalidades do acordo chegaram a ser regulamentadas na gestão de Jair Bolsonaro (PL), mas não decolaram em meio à insegurança jurídica alegada pelo governo Lula para aceitar esses créditos. A AGU revogou a portaria anterior e criou grupo de trabalho para discutir a nova norma, que agora foi encaminhada à Fazenda.
A discussão do texto gerou divergências dentro do governo. Segundo outro documento obtido pela reportagem, a consultoria jurídica do Ministério do Planejamento alertou a AGU para a “presença de risco jurídico na criação de restrições infralegais às compensações”. Em outras palavras, o órgão entende que não é possível, numa portaria interministerial, restringir o uso de instrumentos autorizados na própria Constituição Federal.
Uma corrente dentro do governo entende que o texto constitucional estabeleceu um “direito subjetivo” para o devedor, que tem a prerrogativa de apresentar ou não os precatórios como forma de pagamento. Segundo essa leitura, se os créditos forem líquidos e certos, não cabe ao Executivo decidir se aceita ou não.
A limitação deve ser questionada por empresas, que investiram na compra de precatórios no mercado, geralmente negociados com descontos em relação ao valor de face, para conseguir poupar recursos no pagamento de outorgas em leilões de infraestrutura.
Embora o encontro de contas possa reduzir o passivo bilionário de dívidas judiciais, represadas por uma emenda constitucional aprovada sob Bolsonaro, as transações obrigam o atual governo a abrir mão de receitas -insumo essencial para alcançar as metas fiscais almejadas pelo ministro da Fazenda. Haddad promete zerar o déficit nas contas públicas já em 2024.
Segundo interlocutores, porém, a limitação não foi pensada “só para fins arrecadatórios”. Há uma avaliação no governo de que o uso dos precatórios não pode “virar inimigo” das próprias concessões e das aplicações de recursos atreladas a elas.
No setor aeroportuário, por exemplo, o valor das outorgas vai para um fundo que ajuda a bancar os terminais regionais ou deficitários. Se o pagamento for todo feito com precatório, membros do governo veem risco de comprometer a finalidade desses recursos.
Na primeira versão da portaria, submetida a consulta pública, o governo manifestou a intenção de fixar um limite global anual para aceitar os precatórios, o que foi descartado. Ainda assim, cada ministério poderá prever, em seus respectivos editais, quanto dos valores poderá ser pago com dívidas judiciais.
Integrantes do Executivo reconhecem que o tema pode ser questionado pelas empresas detentoras desses títulos, mas afirmam que o governo está “preparado e estudado” para enfrentar a discussão.
A minuta prevê ainda que a oferta desses créditos só será considerada concluída “mediante aceitação expressa e efetiva do ajuste de contas, sendo vedada qualquer aceitação tácita”.
Em outro trecho, a regulamentação prevê que os processos em tramitação nos quais foram apresentados precatórios como forma de pagamento deverão ser reanalisados conforme as regras da nova portaria. Nos casos em que os editais não previram limites para aceitar as dívidas judiciais como moeda de troca, haverá 30 dias para fixá-los. As empresas, por sua vez, terão outros 30 dias para regularizar suas ofertas conforme a norma.
Em leitura preliminar, representantes das empresas avaliam que a medida pode gerar insegurança jurídica, dado que as companhias já vêm tentando usar precatórios nos leilões.
A regulamentação do encontro de contas é apenas uma das frentes nas quais o governo vem trabalhando para solucionar o impasse dos precatórios.
Na reunião desta quinta, Haddad e Messias também começaram a discutir cenários e possíveis soluções para o estoque de dívidas judiciais criado por uma PEC (proposta de emenda à Constituição) proposta por Bolsonaro e aprovada pelo Congresso Nacional em 2021. A medida, que ficou conhecida como PEC do Calote, limitou o pagamento anual de precatórios para abrir espaço no Orçamento e turbinar gastos sociais em 2022, ano eleitoral.
Simulações do Tesouro Nacional apresentadas na reunião mostram que o estoque dessas dívidas pode chegar a R$ 200 bilhões em 2027, quando termina o prazo da emenda constitucional e o governo teria de honrar todo o estoque existente.
Como revelou a Folha de S.Paulo, o governo estuda incluir em uma PEC a possibilidade de classificar parte dos precatórios como despesa financeira. A medida permitiria ao Executivo ampliar os pagamentos sem estourar os limites do novo arcabouço fiscal, nem precisar mudar as metas fiscais já sinalizadas pela equipe econômica.
A proposta é vista por críticos como manobra para destravar esses gastos sem evidenciar a piora nas estatísticas fiscais, numa espécie de reedição da contabilidade criativa adotada em gestões anteriores do PT. Membros da Fazenda, porém, rejeitam o rótulo de manobra e dizem que a iniciativa é uma “despedalada” diante do estrago deixado por Bolsonaro.
Essa proposta, porém, enfrenta resistências no Ministério do Planejamento e Orçamento, comandado por Simone Tebet. A ministra já disse publicamente que sua pasta trabalha em outra sugestão, diferente daquela discutida na Fazenda.
Nos últimos dias, membros da área jurídica do governo também passaram a analisar a possibilidade de articular uma saída via STF (Supremo Tribunal Federal), onde já tramita uma ação direta de inconstitucionalidade contra a limitação dos precatórios. A informação foi publicada primeiro pelo jornal Valor Econômico e confirmada à Folha por integrantes do governo.
Caso o STF julgue a emenda como inconstitucional, o governo teria espaço para regularizar os pagamentos nos moldes definidos pela Corte -que tem poder para “modular” a decisão e sinalizar qual o tratamento dar a essa despesa.
A avaliação, porém, é de que, antes de escolher a solução via STF, é preciso fechar uma proposta de como pagar o passivo. Esse caminho ainda não está totalmente definido.