Nas ruas de Parelheiros, bairro do extremo sul da capital paulista, um veículo diferente desfilava naquele sábado de novembro de 2020. Era uma caminhonete branca, com paredes de acrílico que revelavam seu interior —lá dentro a ex-prefeita Marta Suplicy acenava para os pedestres. Em meio à pandemia da Covid-19, o veículo adaptado permitiu que ela participasse de um ato com Bruno Covas (PSDB), que disputava a reeleição para a Prefeitura de São Paulo.
Com capital político nos bairros periféricos, especialmente pelos programas sociais que lançou em sua gestão à frente da capital (2001-2004), Marta foi um ativo de Covas naquele segundo turno contra Guilherme Boulos (PSOL). Além de circular com a ex-prefeita, o tucano a citou em seu programa eleitoral na televisão, prometendo que se fosse reeleito construiria mais 12 CEUs (Centros Educacionais Unificados), símbolo da administração da então aliada.
Covas derrotou Boulos com 59% dos votos, vencendo em 50 das 58 zonas eleitorais. Acabou perdendo em Parelheiros, mas teve um bom desempenho com a ajuda de Marta: 49,65% dos votos, contra 50,35% do psolista.
Na eleição deste ano, o cenário é o oposto: Boulos é o candidato que contará com o capital da ex-prefeita, que aceitou ser sua vice. Seu entorno menciona três frentes em que Marta pode ajudá-lo: a conquistar mais votos na periferia, a moderar a imagem de radical que ele tem junto a certos setores e a oferecer à chapa um verniz de experiência na máquina pública.
Pessoas envolvidas nas pré-campanhas dos principais adversários minimizam o apoio da ex-prefeita e dizem que ela pouco acrescenta ao psolista, argumentando que os dois dividem o mesmo grupo de eleitores. Aliados de Boulos discordam dessa avaliação, afirmando que Marta pode ajudar a atrair eleitores da periferia que poderiam orbitar em torno do prefeito Ricardo Nunes (MDB) por conta de obras da prefeitura nessas regiões.
“Boulos tem eleitorado na zona sul, na zona leste, mas Marta dialoga com outro eleitor dessas regiões, aqueles favorecidos por programas que ela desenvolveu”, afirma o deputado estadual Paulo Fiorilo (PT), que participa da coordenação da pré-campanha do psolista e foi chefe de gabinete da ex-prefeita em 2003.
O principal legado de Marta, ampliado pelos sucessores, são os CEUs –centros com escolas, teatros, quadras esportivas, bibliotecas e piscinas. A ex-prefeita inaugurou 21 deles em sua gestão. Por vezes, são um dos únicos equipamentos de lazer em áreas periféricas.
Aliados de Boulos também citam como vitrine de Marta o programa “Vai e Volta”, que transportava gratuitamente estudantes da educação infantil e do ensino fundamental às escolas municipais. A inauguração do Bilhete Único em sua gestão é outro ativo mencionado pelo entorno do psolista.
O deputado estadual Simão Pedro (PT), envolvido na pré-campanha de Boulos, lembra ainda da extensão da Radial Leste durante a gestão Marta e a mudança na autoestima de moradores.
A primeira pesquisa Datafolha para a Prefeitura de São Paulo, de agosto do ano passado, mostrou que Boulos e Nunes estavam empatados tecnicamente entre os eleitores que ganham até dois salários mínimos, com o prefeito numericamente à frente. O emedebista também contava com a preferência de quem estudou até o ensino fundamental. Diante dos números, a pré-campanha de Boulos avalia que ele poderia se beneficiar do apadrinhamento de uma figura forte junto aos eleitores de bairros periféricos.
Uma ala do PL chegou a aventar Marta como opção para a vice de Nunes, de quem era secretária, para buscar votos na periferia e enfraquecer Boulos. Mas o nome da ex-prefeita, historicamente ligada ao PT –ainda que tenha rompido com o partido em 2015–, desagradou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Marta encerrou o mandato com 49% de aprovação, segundo o Datafolha, mas perdeu a eleição de 2004 para José Serra (PSDB). Ainda assim, a ex-prefeita teve desempenho superior ao rival em 14 zonas eleitorais nos extremos da capital. O cenário se repetiu na eleição seguinte, em 2008, quando foi derrotada por Gilberto Kassab (PSD) —naquele ano, ela teve 77% dos votos em Parelheiros, na zona sul.
Em 2016, quando João Doria venceu com folga as eleições para a prefeitura, ainda no primeiro turno, Marta amargou o 4° lugar, com 10% dos votos. O então tucano perdeu apenas em duas zonas eleitorais, na periferia da zona sul, onde a ex-prefeita saiu vitoriosa: Parelheiros e Grajaú.
Se por um lado a campanha de Boulos deve tentar usar medidas populares da gestão Marta como vitrine, especialmente junto ao eleitorado de bairros periféricos, por outro adversários poderão explorar ações impopulares da sua administração.
A principal delas foi a criação das taxas do lixo, da iluminação e do comércio, que renderam a alcunha de “Martaxa” e entraram no caminho da sua reeleição.
Também houve acréscimo sobre o ISS (Imposto Sobre Serviços) e mudanças na cobrança do IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana). À época, a Folha noticiou que a política tributária do município gerou aumentos de até 1.000% em alguns impostos.
Nos anos seguintes, Marta acabou ficando marcada pelas taxas, mal recebidas pela população. Em 2015, em entrevista ao Valor Pro, ela disse que a ideia de criar os tributos partiu de Fernando Haddad (PT), chefe de gabinete da secretaria de Finanças em seu mandato. “Eu fui responsável porque era prefeita, mas a ideia foi do Haddad. Os anos passaram, amadureci e me arrependo”, afirmou Marta.
Em 2012, a Folha mostrou que Haddad tinha sido escalado para convencer os vereadores a aprovar as taxas. Naquele ano, em entrevista à TV Estadão, ele disse que os tributos foram encomendados pelo gabinete de Marta. “Nós não tínhamos recursos para absolutamente nada. Houve uma decisão política da prefeita de aumentar a arrecadação e isso foi feito”, afirmou.
Nas eleições de 2016, quando concorreu novamente à prefeitura, Marta era a segunda candidata com maior rejeição (32%), atrás apenas de Haddad (43%), segundo o Datafolha. Em evento de campanha, ela disse que a desaprovação poderia estar relacionada às cobranças quando prefeita.
O tema foi explorado por adversários, como Doria, nos debates eleitorais. “O que a população lembra bem [do mandato de Marta] é das taxas, dos impostos, que fez com que você ganhasse o apelido ‘Martaxa’”, disse o ex-tucano em um deles.
Ao longo daquela campanha, a ex-prefeita tentou limpar sua imagem com o eleitor, repetindo que tinha errado ao aumentar as cobranças e se arrependido. “Mais importante que aprender com os próprios erros é ter humildade de pedir desculpas por eles. Eu espero que você sempre se lembre dos meus acertos, mas eu peço desculpas, que me desculpe pelos tropeços.”
A gestão Marta também foi criticada pela construção de um túnel no cruzamento das avenidas Rebouças e Brigadeiro Faria Lima. A inauguração, um mês antes das eleições de 2004, teve congestionamentos e até atropelamentos. Dois meses depois, o túnel inundou e teve que ser interditado. A obra foi orçada em R$ 65 milhões, mas acabou custando R$ 97 milhões após aditamento.